“Fui dopada e estuprada dentro do hospital de Itacoatiara e ninguém fez nada para me ajudar porque não existe monitoramento. Não fizeram exame de corpo de delito antes alegando que eu estava sob efeito de remédios, sendo que o exame dever ser feito de imediato. Fui acusada de mentir, enquanto ele (agressor) está solto. Me foi negado o direito garantido por lei de ter um acompanhante, o que poderia ter evitado um crime. Estou com trauma de ir ao hospital quando sinto dor, pois prefiro sofrer em casa porque tenho medo que aconteça a mesma coisa”.
O depoimento é de uma jovem de 24 anos que, pela primeira vez, esteve diante de gestores da Saúde de Itacoatiara para expor, de forma emocionada, seu desabafo e cobrar providências, após ser violentada grávida, por um técnico de enfermagem, no Hospital Regional José Mendes, em outubro deste ano.
O relato foi um dos vários apresentados pela população durante audiência pública promovida pela Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), nessa quarta-feira, 24, em Itacoatiara, para discutir e buscar providências efetivas contra a violência física e verbal sofrida por mulheres no período do pré-parto, parto e pós-parto, no município.
A iniciativa reuniu, ao menos, 110 pessoas entre representantes de instituições federais, estaduais, municipais e da sociedade civil no auditório do Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam). A população teve a oportunidade de expor para os gestores públicos as experiências chocantes que viveram e cobrar publicamente mudanças e punição para os casos, como o especialista em terapia manual, Francisco Alencar, que perdeu a mulher e o filho há quase seis anos por suposta negligência da rede de saúde da cidade.
“O maior problema da Saúde de Itacoatiara e que continua sendo responsável por mortes de mulheres e crianças desde que perdi minha esposa e filho é a falta de monitoramento e de UTI. São inexistentes. De lá para cá nada mudou. Minha esposa ficou sozinha esperando meu filho nascer e quando viram, já estava tarde. Tentaram o centro cirúrgico e nos encaminharam para Manaus com dois técnicos de enfermagem. Não teve monitoramento adequado. A pressão estava alta, ela teve parada cardíaca e eclampsia. Para piorar, quando chegamos a Manaus nenhum hospital queria recebê-la. Ficamos andando de hospital em hospital até o João Lúcio aceitar minha esposa. Só lá ela teve acesso à estrutura que precisava muito antes em Itacoatiara”, contou Francisco que aguarda o desfecho de processo que tramita na justiça estadual.
Na data da audiência completou um mês que a doméstica Regiane Teles perdeu o bebê que tanto imaginou ter em seus braços e amamentar. Ela emocionou os participantes ao contar o caso de negligência que sofreu. Regiane procurou o hospital sentindo fortes dores em uma sexta-feira. Foi colocada em uma sala onde ficou por algumas horas aguardando atendimento. Enquanto pedia ajuda, ouvia “gargalhadas” do outro lado da parede. A resposta que recebeu momentos depois foi que podia esperar para fazer o parto na segunda-feira, após o fim de semana.
“Falei que não estava me sentindo bem e o médico disse que dava para esperar até a segunda-feira. No sábado, viram que não estava bem e às 11h37 fizeram o parto e tiraram o bebê sem falar nada para mim. Pensava que ele estava na pediatria, mas somente à noite disseram que o bebê estava sendo encaminhado para Manaus porque não estava bem”, relatou. A criança não resistiu e morreu a caminho da capital.
Na ocasião, a representante do Humaniza Coletivo Feminista, Raquel Geber, fez uma apresentação com dados e relatos reais de violência obstétrica que ocorreram no Amazonas, incluindo mortes de mulheres e crianças nos últimos anos. A maioria das mulheres que morreram eram pardas e tinham de 20 a 29 anos. Ela chamou atenção para o fato que “é extremante difícil punir profissionais da saúde que cometem violência obstétrica”. “No interior a violência mais comum é a violação da lei do acompanhante, indução do parto normal ou aborto, ausência ou insuficiência de profissionais, cesárea sem indicação clínica e exercício ilegal da profissão”, alertou.
A direção do Hospital Regional José Mendes respondeu aos casos citados individualmente e informou que está tomando as providências cabíveis. Já a Secretaria Municipal de Saúde reconheceu que há dificuldades, mas disse que mudanças têm sido implementadas para melhorar o atendimento na unidade hospitalar.
A defensora pública Gabriela Gonçalves, que atua no Polo Médio Amazonas, em Itacoatiara, coordenou a audiência e explicou que a necessidade da iniciativa foi diagnosticada pela Defensoria, a partir de atendimentos de mulheres grávidas com relatos de violência obstétrica e homens que perderam esposas e filhos no parto.
“Foi uma audiência bastante forte com muitos relatos graves que trouxeram para nós a certeza de que temos muito a construir para implementar direitos que são humanos, principalmente num momento tão delicado que é a gestação e o parto. Como encaminhamento, foi sugerido a criação de um comitê municipal de combate à violência obstétrica. Sabemos que há alguns anos foi implementado um comitê estadual, mas, para que o problema da rede de saúde do município seja resolvido, precisamos trazer efetividade local para alterar uma realidade tão triste que é a violência obstétrica”, ponderou.
Também participaram da audiência o defensor e o subdefensor geral do Amazonas, Ricardo Paiva e Thiago Rosas, respectivamente, além das defensoras Caroline Souza, Suelen Paes, Carol Braz, coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem), e o defensor Theo Eduardo Costa, todos membros do grupo de trabalho criado pela Defensoria para atuar em casos de violência obstétrica.
Cooperação renovada
Durante audiência, a cooperação técnica entre instituições federais, estaduais, municipais e da sociedade civil para combater a violência obstétrica no Amazonas foi renovada com a assinatura de um termo. A cooperação mútua entre as instituições tem o intuito de articular e implementar ações para a conscientização e proteção dos direitos das mulheres durante o período do pré-parto, parto e pós-parto.
Entre as instituições que estavam presentes e assinaram o termo estão as Defensorias do Amazonas (DPE-AM) e da União (DPU), Ministérios Públicos Federal (MPF), do Estado (MPE-AM) e de Contas (MPC), além das Secretarias de Estado de Saúde (SES-AM) e Segurança (SSP-AM) e Municipal de Saúde. Também celebraram o termo o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-AM), Universidade Federal (Ufam) e Estadual do Amazonas (UEA), Humaniza Coletivo Feminino e a Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ).
Informação Assessoria
Fotos: Clóvis Miranda