Ainda que contasse com um arco amplo de alianças mais ao centro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) segue tendo seu desempenho em eleições fortemente correlacionado ao subdesenvolvimento dos municípios do Brasil. No último domingo, 2, o petista foi vitorioso em 97% das mil cidades mais pobres.
Essas são cidades vulneráveis em que o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) não passa de 0,58. Dentre esse grupo, Lula venceu em 977 delas e obteve uma média de votos que chega a 75%. Já o presidente Jair Bolsonaro (PL) ganhou em apenas 26 desses municípios (2,59%), com uma média de 37% dos votos. A apuração mostra que a estratégia do Governo Bolsonaro de usar o benefício do Auxílio Brasil para angariar votos para o candidato à reeleição não funcionou como o planejado.
O cientista político Leandro Consentino, professor do Insper, destaca que, mesmo que exista uma correlação aparente entre a pobreza da cidade e a votação para Lula, não é possível avaliar esse fator como o único determinante, uma vez que outras variáveis, como religião, devem ser consideradas.
Ele lembra a análise do professor André Singer, da USP, sobre a trajetória do lulismo, demonstrando que houve uma mudança de padrão de voto no decorrer do tempo. Ao longo das candidaturas de Lula, o PT deixou de ser um movimento fortemente associado à classe média e à chamada esquerda universitária para, a partir de 2006, depois das políticas de transferência de renda, como Bolsa Família, passar a representar o voto de boa parte da população mais vulnerável.
Contudo, há um forte caráter de identificação personalista. “É o voto no Lula e não necessariamente no PT. E foram três candidaturas petistas, duas da Dilma Rousseff e uma do Fernando Haddad. Agora, com a volta do Lula como o rosto do PT, essa associação ressurge”, comenta. Para Consentino, a baixa votação de Bolsonaro nas cidades mais pobres pode significar uma rejeição por parte dos mais vulneráveis, que não se sentiram representados por suas políticas.
O fenômeno, entretanto, se inverte quando se olha para as cidades onde a qualidade de vida é maior – retratada com um IDHM maior ou igual a 0,73. Nessas localidades, Bolsonaro foi o escolhido entre os eleitores de 869 das mil cidades (86%). Nesse grupo de municípios desenvolvidos e concentrados no Sul e Sudeste, Lula foi o escolhido em apenas 148 (14,74%).
Em São Caetano do Sul (SP), cidade com maior IDH do País, o atual presidente venceu com 50,3% dos votos – em 2018, a sua vitória foi com 75,1% dos votos. Já em Melgaço (PA), município com menos de 10 mil habitantes e o menor IDH do País, a vitória foi de Lula com 64% dos votos – há quatro anos, Haddad também vencia na cidade, mas com 75,6% dos votos.
Do ponto de vista geográfico, o professor do curso de Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ricardo Luigi ressalta que a ideia de desenvolvimento medida pelo IDH também inclui indicadores que vão além da perspectiva econômica, como a qualidade de vida, a saúde e a educação. Entram nesse contexto a possibilidade dos moradores exercerem a própria cidadania, por exemplo.
“O Brasil tem um desenvolvimento complexo em que coexistem avanços e retrocessos. Esse recorte das regiões mostra que o Brasil não pode ser determinado de forma simplista”, afirma. Segundo o geógrafo, o aumento da desigualdade divide as demandas dos grupos sociais. Em uma ponta, pode existir a ideia de que o Estado atrapalha as liberdades individuais e, portanto, sua ausência seria celebrada; enquanto, na outra, a ausência de políticas públicas leva à insatisfação.
Regiões com menor IDH, portanto mais dependentes de equipamentos públicos, podem ser mais sensíveis ao sentimento de redução do bem-estar, por exemplo. Isso eleva a insatisfação com o governo e pode levar o voto ao candidato da oposição. Já as cidades mais ricas possuem outras demandas. “Dá lugar a uma ideia de que quanto maior a atuação do Estado, maior o entrave ao desenvolvimento da liberdade individual”, aponta. Como o presidente Jair Bolsonaro representa um recorte determinado desse pensamento liberal, o voto nele pode se associar a essa visão e ser predominante nos locais de maior IDH.
Para cientista político e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Bruno Bolognesi, o voto dos mais pobres em determinados candidatos costuma ser baseado em interesses diretamente ligados às necessidades cotidianas. “Há uma racionalidade nisso. É preconceito sugerir que seja ignorância”, comenta. O cientista político argumenta que a votação de Lula em cidades com baixo IDH pode ser referente a um processo de memória de tempos mais fartos, que é reforçado pela campanha petista. Já em cidades mais desenvolvidas, com uma classe média maior e necessidades materiais parcialmente resolvidas, outros aspectos, como a religião, passam a pesar mais. Ele reitera que padrões geográficos são comuns em eleições presidenciais e não são uma exclusividade brasileira. “Na França, Emmanuel Macron teve mais votos nos centros e Marine Le Pen na periferia”, destaca.
Bolognesi também lembra da virada registrada na eleição de 2006, a partir das políticas de transferência de renda, como um ponto de atenção na trajetória de Lula. Ele destaca que na votação para o primeiro mandato como presidente, em 2002, Lula teve mais votos concentrados no bloco Sul e Sudeste, mas esse perfil vai mudando ao longo do tempo. Também Bolsonaro, em 2018, teve uma votação mais expressiva no Nordeste, por exemplo.
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